Na Zona Norte de Juiz de Fora, mulheres fortalecem as lutas e reivindicações de suas comunidades
- projetovielas2025
- 7 de mar.
- 16 min de leitura
Conheça as personagens femininas que deram rosto e coração pela construção da Manchester Mineira
REGIÃO NORTE
Por Ana Luísa Almeida e Júlia Valgas
A Zona Norte de Juiz de Fora é composta por 63 localidades. Isto é, os bairros que surgem inclusive dentro dos próprios bairros, como o exemplo de Benfica, que é considerado um bairro pela legislação municipal, mas abriga mais de 40 mil pessoas e, por isso, possui várias localidades. Segundo dados disponíveis no site da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), é a maior região da cidade e também abriga a maior quantidade de ruas com nomes de mulheres, sendo 87 no total, entre os 99 logradouros com nomes femininos.
Classificação dos logradouros com nomes de mulheres
na Região Norte de Juiz de Fora em 2025

O historiador, escritor e ex-vereador Vanderlei Tomáz, reconhecido na Zona Norte como uma liderança, mais especificamente nos bairros de Benfica, comenta que a região, que ele define como um “bairro-cidade”, abriga as principais indústrias de Juiz de Fora e é autossuficiente nas finanças, além de abrigar mais de 150 mil habitantes - garantindo ao lugar o status de maior número de habitantes que 820 municípios mineiros, do qual os moradores muito se orgulham.
Mas mais que representatividade na denominação da cidade, a região abriga trajetórias de mulheres fortes e potentes que construíram o município. O ex-vereador também comenta sobre a importância de reverberar as histórias dos herois anônimos das comunidades locais.
Essa reportagem reúne a história de seis figuras, aqui escolhidas para representar todas as mulheres, conhecidas ou anônimas, que diariamente marcam - e transformam! - a realidade de suas comunidades. Cléa Gervason Halfeld, Maria Geny Barbosa, Ana Salles de Almeida, Maria Eugênia, Clementina de Jesus e Helena Antipoff dão rosto e vida pelas ruas dessa cidade.
Democratização da literatura e devoção à Igreja: Cléa Gervason Halfeld
Cléa Gervason Halfeld, filha de Adelino Gervason e Geraldina Di Giacomo Gervason, esposa de Geraldo Halfeld, nasceu em Juiz de Fora, em 1921, e passou por diversas instituições de ensino na cidade, como o Colégio Normal e o Colégio Stela Matutina.
De descendência italiana, filha de um dos primeiros operários da cidade, Cléa conheceu o esposo aos quinze anos. Em “Bate Coração”, Geraldo conta que as amigas Beatriz e Wanda, filhas do industrial Oscar Maurer, semanalmente eram responsáveis por levar seus presentes à vizinha Clea durante os anos que antecederam o compromisso do casal. Em 1944, os Halfeld noivaram e casaram-se. Foram casados por 56 anos.
Católica, devota de Santo Antônio e São Geraldo, Clea e Geraldo tiveram quatro filhos: Alexandre, Fernando, Fátima e Maria. Clea e Geraldo viveram por anos com a mãe dele, e, apenas com a promoção do esposo para o Rio de Janeiro, Clea, que cuidava da casa e da família, ingressou no mercado de trabalho como professora.
Na vida profissional, além de professora, Clea era reconhecida por suas produções textuais e escreveu para jornais e revistas, além da publicação de 14 livros entre Literatura Infantil, Culinária, Poesia e Cultura. Fez parte de 16 Academias Literárias, incluindo a Academia Nacional de Letras e Artes e a Academia Brasileira de Jornalismo.
Clea nunca fez de suas produções um investimento financeiro: doava as obras a escolas ou lançava os livros em prol de instituições beneficentes da cidade, que utilizavam o lucro para manter seus projetos sociais. Em um dos seus livros, Cléa reuniu um compilado de relatórios e cartas de carinho recebidas dos leitores de seus textos.
Faleceu no dia 09 de maio de 1999, no Dia das Mães, tranquila e na companhia do marido. Segundo o esposo, inclinou a cabeça para pegar uma xícara de leite e sofreu um
infarto fulminante.
“Nasceu apenas para praticar o bem na Terra. Essa bondade de seu coração conquistou numerosos amigos, seus sentimentos nobres concederam-lhe a estima de todos que a conheceram”, descreveu Geraldo Halfeld em homenagem que publicou para a amada em “Bate Coração”, último livro de Clea, publicado post mortem pela família.
Até o fechamento desta edição, nenhum amigo ou familiar de Clea havia respondido nossos contatos. Todas as informações foram retiradas do blog Clea Gervason Halfeld, criado pela família em reconhecimento à sua história. Clea dá nome à uma rua no bairro Santa Cruz, na Região Norte de Juiz de Fora.
Fotografia da Rua Clea Gervason Halfeld, no bairro Santa Cruz, em Juiz de Fora.
Fé nas pessoas e na educação: Dona Ana Salles
A divisa entre os bairros Vila Esperança I e II é responsabilidade da Rua Dona Ana Salles, mas a sua atuação na região vai além da demarcação de territórios. Antiga moradora da região, filha de José Salles de Almeida e Carolina Cândida de Almeida Pires, Ana Salles de Almeida, mais conhecida como Donana, nasceu em Lima Duarte em 8 de maio de 1889 e posteriormente mudou-se para Juiz de Fora e casou-se com Francisco Evangelista da Fonseca. Vanderlei Tomáz conta que Francisco era apelidado de Chico Donana, em referência à mulher, que foi uma figura querida e popular na região de Benfica.
Donana e o marido residiam na casa principal da Fazenda Benfica, que hoje se tornou o condomínio Ana Rosa, situado na Rua Martins Barbosa. Mais adiante na rua está a Escola Estadual Ana Salles, que recebe este nome porque foi construída no terreno doado pelo casal Ana e Francisco ao Estado de Minas Gerais. Donana foi professora na instituição durante anos.
Certificado de doação do imóvel onde atualmente se localiza a Escola
Estadual Ana Salles por Chico e Donana. Fonte: Escola Estadual Ana Salles.
Júlio César Dias, indicado pelos moradores da rua como o primeiro fotógrafo da região de Benfica, reconhece Ana Salles como uma personagem importante na história do bairro. Tanto a escola quanto a fazenda onde morava Ana foram cenário de diversos registros.
Os moradores do bairro, embora tenham poucas informações sobre Ana Salles, trazem consigo boas lembranças da época de estudos na escola e reconhecem seu destaque na comunidade.
A história de caridade e educação de Donana está eternizada em uma rua com seu nome na Região Norte de Juiz de Fora, no bairro Vila Esperança I.
Do luto nasceu caridade: Maria Geny Barbosa

Religiosa e disposta a ajudar o outro, Maria Geny Barbosa deu o coração pelo bairro Santa Cruz, na Zona Norte de Juiz de Fora. Mulher simples e caridosa, reconhecida pela mídia e pelas lideranças municipais como figura de honra, ao perder um filho de um ano e cinco meses por afogamento, tornou-se médium. Em uma entrevista, contou que seu primeiro atendimento foi realizado quando tinha 23 anos e curou uma mulher que estava com hemorragia pós-parto.
Com a mudança de parte dos filhos para trabalhar em Juiz de Fora, Dona Geny e o marido Antônio, apelidado de Nico, decidiram se mudar para a cidade e deixar a casinha de sapê em que moravam na zona rural de Ubá. Apesar de toda humildade, tinha um único objetivo: dar oportunidade para que os doze filhos estudassem.
A espiritualidade foi responsável por aproximar Geny da comunidade, que sempre podia contar com as doações das cestas básicas que arrecadava. Na Associação Espírita Padre Antônio Vieira, da qual é fundadora, até hoje são frequentes as ações sociais.
E as benfeitorias não pararam: ao perceber a demanda da comunidade por uma creche, transformou a obra em seu sonho pessoal. Com a Cessão de Direitos de um terreno pela Prefeitura de Juiz de Fora e as várias festas beneficentes que realizou, Geny conseguiu arrecadar doações para construir uma escola que hoje recebe 106 alunos, de recém-nascidos aos quatro anos. De doação em doação, hoje a creche possui apoio financeiro municipal e mais de 20 anos de história.
Mais que uma figura querida, Geny levou fé e amparo a quem precisava e, mesmo após o seu falecimento, ainda contribui para que dezenas de pessoas tenham a esperança de um mundo melhor e mais justo. Histórias e depoimentos não faltam sobre alguém que fez de Juiz de Fora um lugar mais bonito e se tornou inclusive nome de rua.
A mão feminina de um bairro todo: Maria Eugênia
A Rua Maria Eugênia, localizada no Bairro Araújo, na Zona Norte de Juiz de Fora, homenageia uma das mulheres que mais contribuiu para a criação do Araújo e desenvolvimento do bairro Benfica, em meados do século XlX. Sendo proprietária de grande parte da região, Maria Eugênia foi pioneira em ofertar novos serviços que não existiam na época, como a fundação de uma escola e um hotel.
O Bairro Araújo se situa entre a ferrovia da Zona Norte e a Avenida Garcia Rodrigues Paes (Acesso Norte). Sua ocupação em 1853, quando o fazendeiro Manoel Mendes de Serqueira vendeu sua fazenda, chamada Fazenda Bemfica, para o coronel Francisco Martins Barbosa, pai de Maria Eugênia Barbosa Rodrigues. Após sua morte, Maria Eugênia recebeu a propriedade, que teve seu nome alterado para “Sítio da Grota”, como herança.
A casa de Maria Eugênia ficava onde hoje está a transportadora Ibor, fundada em 1973. Porém, a mais de cem anos atrás, a dona da casa também se tornaria dona da primeira escola da região de Benfica: em 1898, Maria Eugênia fundou a Escola Mista Rural de Benfica, que em 1989 foi transferida para a Rua Evaristo da Veiga e renomeada Escola Estadual Professor Lopes. A instituição teve como primeiras professoras Djanira Augusta e Barbosa Maria das Dores Dias Lizardo Ferreira Leite, que atualmente dá nome a uma escola de Educação Infantil no bairro.

Juiz de Fora foi uma cidade vítima de uma industrialização acelerada. A economia cafeeira contribuiu de forma efetiva para o desenvolvimento de empresas e a formação de um parque industrial, localizado no bairro Distrito Industrial, também na região Norte e próximo do Araújo. Marcado pela presença de muitas fábricas e empresas, o Distrito ganhou seu caráter de comércio desde os tempos de Maria Eugênia, que enxergou neste fato uma oportunidade.
Segundo Vanderlei Tomaz, já no início do século XX, na região do Distrito Industrial havia um forte movimento de boiadeiros devido a uma feira de gado: “Havia uma feira de gado, uma balança, uma pesagem de gado, então o movimento de vaqueiros, boiadeiros, que era muito grande”, explica.
Foi nesse momento que Maria Eugênia fundou o primeiro Hotel da região, chamado de Hotel dos Boiadeiros. Não se sabe a localização exata do empreendimento, mas acredita-se que ficava perto da área da Estação de trem de Benfica.

Porém, assim como faltam registros visuais de Maria Eugênia e de seus feitos para a Zona Norte de Juiz de Fora, não há nenhuma lei municipal que conceda o nome dela a essa rua. O que provavelmente aconteceu, é que o caminho ficou conhecido como Maria Eugênia porque dava acesso para a propriedade dela, logo, também para a escola da região.
Hoje, existe um projeto desenvolvido por Vanderlei Tomaz e seus amigos Sergio Berg, Milton, Lúcio e Alexandre, onde, junto aos moradores, fizeram uma plantação de árvores frutíferas ao longo da rua Maria Eugênia. Com a iniciativa, o local se tornou o primeiro pomar público de Juiz de Fora, onde qualquer pessoa pode pegar uma fruta e colaborar para a preservação do bairro e do meio ambiente.
Um exemplo de amor aos excluídos: Helena Antipoff

Helena Wladimirna Antipoff nasceu na Bielorrússia, em 25 de março de 1892. Apesar do sangue europeu, sua alma se tornou mineira: convidada pelo secretário de Interior de Minas Gerais, em 1929 iniciou um intenso trabalho pela educação e estudo da psicologia em Minas e no Brasil. Fundou a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte, visando o ensino e inclusão de pessoas com deficiência, sendo esta somente uma de suas relevantes contribuições.
Helena iniciou sua carreira acadêmica na Universidade de Sorbonne, na França, onde cursou Ciências entre os anos de 1910 a 1911. Interessada por psicologia, no ano seguinte seguiu para a Universidade em Genebra, na Suíça, até 1916, onde estudou sob a direcção do psicólogo Édouard Claparède, um dos primeiros a formular teorias sobre o mecanismo de aprendizagem infantil.
Em 1917, voltou à sua cidade natal para cuidar de seu pai, o comandante Wladimir Vasilievich Antipoff, ferido em uma das inúmeras batalhas da Primeira Guerra Mundial. Lá, começou a trabalhar como psicóloga infantil na Estação Médico-Pedagógica de Petrogrado e de Viatka, na elaboração de projetos para reeducação de crianças que haviam sofrido o trauma da Grande Guerra.

Em 1921, trabalhou como pesquisadora no Laboratório de Psicologia Experimental de Petrogrado, investigando o impacto da guerra no desenvolvimento de crianças fora do período de alfabetização. Entretanto, os resultados de suas pesquisas causaram insatisfação da comunidade acadêmica da então União Soviética, fato que forçou sua fuga do país para se exilar em Berlim.
Anos depois, já fora do exílio, em Genebra lecionou psicologia no Institut Jean-Jacques Rousseau, local onde desenvolveu e publicou diversos artigos científicos, voltados principalmente para a defesa do método da experimentação natural para o estudo do desenvolvimento intelectual, sendo a primeira mulher a abordar essa temática fora da União Soviética.
Sangue europeu, alma mineira
Seu encontro com o Brasil aconteceu em 1929, já bem reconhecida por seu trabalho como pesquisadora e professora na área da psicologia. Naquele ano, recebeu o convite do então responsável pela Secretaria do Interior de Minas Gerais, Francisco Campos, para liderar uma reforma no ensino do Estado. Mudou-se para Minas com o objetivo de lecionar na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico, onde poderia aplicar os projetos que desenvolveu em seus anos de estudo.
Em seu trabalho no Brasil também assumiu a assessoria da Escola para aplicar testes de inteligência nos alunos de instituições públicas. Seu intuito era dividir as crianças de forma homogênea nas salas de aula, alocando com base no nível de inteligência e idade. Atuando também no Laboratório de Psicologia da instituição, passou a utilizar no dicionário de Piscologia a palavra “excepcional” em substituição ao termo “retardado”, que era utilizado para estigmatizar pessoas com alguma deficiência.
Em 1932, movida por seu desejo de contribuir para a educação desses alunos, criou a Sociedade Pestalozzi, em Belo Horizonte. No local, a união entre médicos, professores e pesquisadores promovia estudos e iniciativas para auxiliar na inclusão educacional e social dessas pessoas.
O que foi o movimento pestalozziano?
O nome Pestalozzi vem do educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827). Seu reconhecimento
na filosofia e na educação se dá pelo desenvolvimento de estudos sobre educação especial.
Considerado o maior filósofo da humanidade, dedicou-se à literatura, política, pedagogia e
influenciou a criação de estabelecimentos de ensino em todo o mundo. No Brasil, o primeiro
Instituto Pestalozzi foi fundado no ano de 1918, no município de Canoas (RS),
pelo educador alemão Tiago Wurth. Em 1932, Helena Antipoff seguiu o
trabalho e fundou a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte.
O complexo da Fazenda do Rosário também foi idealizado pela pedagoga russa. Em 1940, no município mineiro de Ibirité, expandiu o acesso à educação aos “indivíduos excepcionais”, com a prioridade de promover a formação de professores para as regiões rurais, em regime de internato. Mais tarde, em 1955, criou o Instituto Superior de Educação Rural (ISER), onde hoje funciona a Fundação Helena Antipoff (FHA), para capacitar os profissionais da educação para as escolas normais rurais.
Hoje, 51 anos após sua morte, a Fundação Helena Antipoff continua o trabalho da professora. Focada no ensino de qualidade e na oferta de oportunidades para o aluno, a instituição oferece formas de lazer e cultura agregados ao ambiente escolar. Em Divinópolis, Minas Gerais, o nome de Helena batiza um hospital que visa demandas de pessoas com deficiência do bairro São João de Deus. Em Juiz de Fora, uma rua do bairro Benfica e uma escola do distrito de Rosário de Minas ganharam seu nome.
“Argila, terra, madeira, água e ferramenta farão a criança criar o que seu coração deseja e seu cérebro inventa, em contato com a natureza e inventa, em contato com a realidade” - Helena Antipoff
No Rio de Janeiro, o Instituto Municipal Helena Antipoff é destinado especificamente para a educação especial. Pensando em uma educação inclusiva e funcionando desde 1977, atualmente a instituição conta com salas multissensoriais, uma ala especial de transcrição em braile para alunos cegos e com baixa visão e nove oficinas, que buscam desenvolver a integração e a criatividade dos estudantes através de atividades como teatro, dança e música.

A Fazenda do Rosário, um dos símbolos de sua luta pela educação inclusiva, foi onde veio a falecer em 9 de Agosto de 1974. Helena Antipoff foi considerada pioneira em estudos, programas e assistência psicológica e pedagógica a pessoas com deficiência, deixando um legado na história brasileira, mas também no mundo.
Rainha do Partido-Alto: Clementina de Jesus
Dona de uma voz forte e de uma rua no bairro Benfica, na cidade de Juiz de Fora, Clementina viveu como doméstica até seus 63 anos, mas desde sempre foi artista. Famosa no samba e conhecida por popularizar as raízes africanas da música brasileira, seu nome ecoou pelos palcos, teatros e até na Europa.

Nascida na cidade carioca de Valença, em 07 de fevereiro de 1901, carregou a herança pesada do racismo de um país que tenta a todo custo esconder: neta de escravizados, filha da parteira Amélia de Jesus dos Santos e do capoeirista e violeiro Paulo Batista dos Santos, viveu uma infância humilde, cresceu em meio às rodas de samba e músicas tradicionais de sua região e ouvindo sua mãe cantar enquanto trabalhava lavando roupa.
Foi dela que Clementina tirou as bases para se tornar a grande sambista que se tornou: através de ladainhas, pontos de jongo (dança de roda de origem africana, conhecido como “avô do samba”) e partidos-altos. Aos sete anos, se mudou primeiro para Jacarepaguá e posteriormente para Oswaldo Cruz, onde encontrou o espetáculo do carnaval.
Convivendo no meio da musicalidade, quando adolescente desfilava pelos bloquinhos de carnaval, como o Moreninha das Campinas, grupo que deu origem a Escola de Samba Portela, fundada justamente no bairro Oswaldo Cruz. Cantava também na Igreja que sua família tinha o costume de ir, numa mistura de catolicismo e cultura afro-brasileira.
Em 1940 se casou com Albino Corrêa Bastos da Silva e se mudou para o Morro da Mangueira. Lá, viveu durante 20 anos trabalhando como doméstica e lavadeira, mas a paixão pela música nunca se calou: cantava assim como a mãe, sem intenção de ser ouvida, mas com todo o coração.

O encontro da música
Após duas décadas vivendo como doméstica em sua vida pacata, quando Clementina completou 63 anos, foi finalmente descoberta como a artista que era. Em 1963, o produtor Hermínio de Carvalho estava em uma festa da Penha, tradicional festividade do Rio de Janeiro, e se deparou com a sambista cantando na Taberna da Glória. Apesar de chamar sua atenção, não teve contato com ela.
O reencontro aconteceu na inauguração do restaurante Zicartola, criado pelo cantor e compositor Angenor de Oliveira (Cartola) e sua esposa, Euzébia Silva do Nascimento, mais conhecida como Dona Zica. Hermínio conversou com Clementina sobre seu interesse em ensaiá-la para o espetáculo Rosa de Ouro, que estava previsto para março de 1965, organizado por ele mesmo.
Zicartola e o samba
O Zicartola foi um restaurante aberto na cidade do Rio fundado por Cartola
e Dona Zica, nomes importantes da escola de samba Estação Primeira de Mangueira,
e funcionou durante os anos 60 como ponto de encontro de sambistas
e músicos. As apresentações no local aconteciam nas quartas e sextas feiras,
como forma de manter viva a chama pela música dos antigos compositores,
como Zé Ketti, que haviam perdido seu status com o surgimento das escolas de samba.
No show, um grande público contemplou o surgimento de duas lendas do samba: Paulinho da Viola e Clementina, dois nomes que iriam se juntar algumas vezes numa parceria que enriqueceu a música brasileira. A resposta dos brasileiros foi única em confirmar Clementina como um talento nato nascido do samba e que haveria de viver nele.

Com o sucesso repentino, o talento de Clementina não se limitou somente a terras brasileiras: em 1966, viajou para Dakar, no Senegal, para participar do encontro das artes negras, junto com Martinho da Vila, se apresentando em um estádio de futebol. Na França, cantou no Festival de cinema de Cannes, com uma aclamação gigantesca do público.
Também nesse ano, gravou seu primeiro disco solo, intitulado “Clementina de Jesus”, onde gravou a icônica “Marinheiro Só”. Seus trabalhos em colaboração com outros artistas como João da Baiana, Pixinguinha e o próprio Paulinho da Viola somam parte importante de seu repertório musical, como “Mudando de conversa, Fala Mangueira!” e “Gente da antiga”, um clássico do samba.

Ao longo de sua carreira, Clementina gravou treze LP’s, incluindo seus discos solos e outros trabalhos colaborativos. Considerada a “rainha do partido-alto” e apelidada de Quelé, teve um papel importante na música popular brasileira, sendo mulher em um contexto machista e valorizando suas origens em um país racista.
Entretanto, a carreira de Clementina terminou de forma melancólica. Com pouco sucesso comercial, produtores e empresários começaram a perder o interesse na cantora, que passou a sofrer com problemas financeiros e de saúde.
Em 1983, recebeu uma homenagem da Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis no enredo “A Grande Constelação das Estrelas Negras” e com um show no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com a presença de seu companheiro revelação, Paulinho da Viola.
Clementina faleceu em 19 de julho de 1987, em decorrência de um derrame. Em uma reportagem concedida ao Jornal do Brasil, um dia após sua morte, Paulinho da Viola sintetizou a perda da artista: “Com a morte de Clementina, perdemos uma grande figura humana, uma artista que representa o povo negro, ligada à história do nosso país.” Porém, a música só ganhou com a vida de rainha Quelé e seu legado, segue sendo tão nobre quanto ela.
Mas as histórias vão muito além

Para além das mulheres aqui citadas, Vanderlei Tomáz compartilhou conosco a trajetória de algumas das mulheres que dão nome às ruas da cidade.
No bairro Benfica, a Rua Marília recebe este nome em homenagem à Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, mais conhecida como Marília de Dirceu, importante personagem na história da Inconfidência Mineira. Além de musa inspiradora de Tomás Antônio Gonzaga, Marília foi uma mulher à frente do seu tempo, que reivindicou sua independência financeira em uma época em que os homens eram os responsáveis pelas economias, além de uma atuação ativa na vida pública de Ouro Preto, município onde residia.
Durante a década de 1940, o então prefeito de Juiz de Fora, José Celso Valadares Pinto, durante regularização da área central de Benfica, que foi chamada de Vila Benfica, propôs novos nomes às ruas do local em homenagem à personagens de destaque na história do Brasil, como é o caso da rua dos Emboabas, rua Diogo Álvares, rua Bento Gonçalves, bem como do logradouro
que reconhece Marília.

Já no bairro Vila Esperança, o nome da Rua Clara Nunes deve-se à importância da cantora, reconhecida nacionalmente, na carreira do compositor juiz-forano Armando Fernandes Aguiar, popularmente chamado de Mamão. Na década de 1960, Juiz de Fora era uma cidade determinante no cenário da Música Popular Brasileira e recebia festivais nacionais do gênero. Clara Nunes, em uma de suas visitas ao município, interpretou a música “Tristeza Pé No Chão”, composta por Fernandes Aguiar, e posteriormente a gravou. Foi na voz dela que a música conquistou o país e Mamão, morador da região do bairro Vila Esperança, se projetou no cenário musical.
No Bairro Araújo, a Rua Professora Teresinha de Andrade, nomeada pela Lei N° 2606, de 07 de Novembro de 1966, de autoria do vereador Ignácio Halfeld, homenageia a professora primária e de Religião que lecionou na Escola Estadual Almirante Barroso. Teresinha era mãe de cinco filhos e casada com Filinto de Andrade.

Histórias que precisam ser lembradas
A Zona Norte de Juiz de Fora abriga histórias incríveis de mulheres que muitas vezes são esquecidas entre as esquinas. A falta de informação e de reconhecimento da população em relação a essas mulheres só mostra que um trabalho de pesquisa, produção e divulgação é extremamente necessário para entender sua importância.
Dessa forma, o Projeto Vielas busca lembrar Juiz de Fora das mulheres que a formam e dos seus principais feitos, pois suas vidas são muito maiores do que uma rua. E a Região Norte ainda tem 93 histórias para serem contadas. Vamos juntos?

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